O alerta que um carregamento de madeira brasileira havia sido apreendido em um porto estrangeiro veio dos EUA, mas poderia ser Alemanha, Inglaterra, Holanda, Bélgica, China, Tailândia ou México. De acordo com investigação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, esses são alguns dos destinos do produto extraído da Região Amazônica – resultado de um esquema sofisticado e financiado por grandes volumes de investimentos.
Membros da PF ouvidos pelo Estadão estimam que cerca de 90% de toda madeira retirada desse bioma seja ilegal. O porcentual é quase o mesmo de uma pesquisa deste ano do Instituto Centro de Vida (ICV) que mostra que 94% da área desmatada na Amazônia e no Cerrado até o segundo semestre de 2020 ocorreu à margem da lei.
Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que o desmatamento na Amazônia Legal em maio foi o maior registrado desde 2016. Pressionada pelo avanço das atividades agropecuárias, a destruição da floresta teve seu terceiro mês seguido de recorde.
A extração clandestina de madeira tem todas as características de grandes empreendimentos, muitas vezes com o aporte de dinheiro transnacional. A situação chegou ao ponto de o próprio ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ser oficialmente investigado por suposta tentativa de liberar um carregamento apreendido. Além disso, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, foi afastado do cargo. “O problema é que temos um nível de ilegalidade que já passou de preocupante”, diz Rômulo Batista, da campanha Amazônia do Greenpeace. Esse é um processo contínuo e caro. “Depois da retirada do filé mignon (as espécies mais valiosas, como o ipê), o caminho fica aberto para grilagem e mineração.”
Nenhum carregamento de madeira pode ser armazenado ou transitar pelo país sem o Documento de Origem Florestal (DOF). É aí que começa a fraude. Desde 2011, a emissão dessa licença passou para os Estados. Nela devem constar informações sobre as espécies, tipo do material, volume, valor do carregamento, placa do veículo, origem, destino, além da rota detalhada do transporte.
A Operação Arquimedes, deflagrada pela PF em 2017, apontou como essa exigência pode ser contornada. Para “esquentar” a madeira extraída irregularmente, madeireiros atuam com servidores públicos que incluem as informações da madeira no sistema nacional, gerenciado pelo Ibama, em troca de propina. Os servidores informam o volume, o tipo e o local do corte da madeira, usando dados de outras áreas que possuem, de fato, autorização para o corte. Essas autorizações são os “créditos florestais”.
Assim, com os créditos emitidos para uma área, o esquema “esquenta” a madeira cortada ilegalmente em outra. Só nos primeiros dias dessa operação, 479 contêineres de madeira de 63 empresas foram apreendidos no Porto Chibatão, em Manaus. Segundo a PF, o volume – cerca de 10 mil metros cúbicos, se fosse enfileirado, cobriria a distância de 1,5 mil quilômetros, equivalente à distância entre Brasília e Belém. O carregamento seria destinado a outros Estados e exportação para América do Norte, Ásia e Europa. Daí em diante, a madeira só pode ser vista nas grandes lojas e em fornecedores no exterior.
A busca por termos como “brazilian hardwood flooring” (piso de madeira dura brasileira, na tradução livre) nos sites de algumas delas, como no da rede americana Lumber Liquidators, mostra onde vai parar esse produto. A empresa já foi condenada pela Justiça por importar madeira ilegal.
Dificuldade. Segundo relatório do Ibama, entre 2012 e 2017, 90% da produção legal de madeira ficou no mercado interno, tendo como destino o Sudeste. Entre os 10% exportados, em ordem decrescente, os dez países com os maiores consumos foram: Estados Unidos; Holanda; França; China; Bélgica; Portugal; Suíça; República Dominicana; Argentina; e Reino Unido. Esses países consumiram 73,5% de todos os produtos madeireiros das espécies ameaçadas de extinção exportados no período analisado.
Mas como diferenciar o legal do ilegal nesse mercado? A pesquisa do Instituto Centro de Vida (ICV) é um exemplo dessa dificuldade. Feito em parceria com Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e Universidade Federal de Minas (UFMG), com apoio do WWF-Brasil, o estudo apontou 94% de ilegalidade na extração da madeira. Para isso, cruzou dados oficiais de desmatamento do sistema Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) para a Amazônia e o Cerrado e bases de dados sobre Autorizações de Supressão de Vegetação Nativa (ASV), obrigatórias para proprietários rurais fazerem o desmate em conformidade com o que prevê a legislação.
A cada ASV autorizada, os pesquisadores foram checar se o local da retirada batia com a área do mapa de áreas desmatadas. “Fizemos o mesmo caminho que uma empresa compradora faria para tentar rastrear a origem da madeira de seu fornecedor”, diz Paula Bernasconi, coordenadora do ICV, que afirma que outro achado do estudo é a completa falta de transparência e desorganização dos bancos de dados dos Estados, responsáveis pela emissão das ASVs. A coordenadora do ICV afirma que a ilegalidade ocorre na falsificação das informações para a obtenção das ASVs e também na utilização irregular dos créditos florestais.
A dificuldade em separar o legal do ilegal nesse mercado é agravada pelo desmonte dos órgãos de fiscalização como o Ibama na gestão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Áreas devolutas, florestas nacionais, reservas e terras indígenas não são contabilizadas, o que pode elevar esse porcentual para além dos 94% encontrados. “Não adianta o Bolsonaro ir à Conferência do Clima e prometer desmatamento ilegal zero até 2030, se não se sabe o que é ilegal”, diz Paula.
Tamanho volume de madeira ilegal cria remessas ao exterior avaliadas em mais de R$ 100 milhões, como no caso dos 226 mil m³ de toras apreendidas na divisa do Pará com o Amazonas, em dezembro de 2020, na Operação Handroanthus GLO. Até agora, é a maior apreensão feita pela PF na Região Amazônica.
A recente ação da PF que mirou o próprio Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o presidente do Ibama, Eduardo Bim, afastado de seu cargo, corrobora essa apuração sobre a rota da madeira clandestina brasileira mundo afora. Batizada de Akuanduba e autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, ela ocorreu a partir de investigações que apontaram para um “grave esquema de facilitação ao contrabando de produtos florestais”. Uma das empresas, cujos proprietários foram alvo de mandatos de busca e apreensão, exportou madeira ilegal, sem autorização prévia do Ibama pelo menos em sete ocasiões: cinco contêineres destinados aos Estados Unidos, um para a Dinamarca e um para a Bélgica. Três contêineres foram detidos pelas autoridades americanas no Porto de Savannah, no Estado da Geórgia.
Após a operação, o presidente Jair Bolsonaro resolveu demitir o delegado Alexandre Saraiva, que estava à frente da investigação, do cargo de superintendente da PF no Amazonas. Há tempos, sua atuação era um problema para Salles, que classificou a Akuanduba como “infundada”. Um mês antes, Saraiva havia enviado ao STF e à PGR uma notícia-crime contra o ministro, o presidente do Ibama e o senador Telmário Mota (Pros-RR). De acordo com ele, Salles havia tentado interferir na investigação.
As pressões sobre o Brasil e sua política ambiental aumentaram com a eleição do democrata Joe Biden nos EUA e se amplificam agora, com desmate e denúncias. Para o coordenador da ONG Amazon Watch, Christian Poirie, qualquer negociação dos EUA com o Brasil sobre a Amazônia deve envolver a sociedade, os governos estaduais, a academia e o setor privado. “Nenhuma tentativa deveria prosseguir antes de o Brasil reduzir o desmatamento aos níveis determinados pela Política Nacional sobre Mudança do Clima e da retirada dos retrocessos ambientais encaminhados pelo governo brasileiro ao Congresso”, afirma Poirie. Procurado pela reportagem, o Ministério do Meio Ambiente não se manifestou.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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