SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Quando o interior do Brasil ainda estava repleto de dentes-de-sabre e preguiças-gigantes, numa época em que os seres humanos ainda nem tinham chegado às Américas, o inverno da Sibéria acabou congelando alguns invertebrados microscópicos. Depois de 24 mil anos “na geladeira”, os bichos foram trazidos de volta à vida por pesquisadores da Rússia e conseguiram até se reproduzir.
A façanha, descrita em artigo na revista científica Current Biology, provavelmente não surpreende tanto quem já conhecia os chamados rotíferos bdelloides, criaturas que lembram vagamente um termômetro (daqueles tradicionais, transparentes e com mercúrio dentro) e medem cerca de um décimo de milímetro. Eles já eram notórios por sua capacidade de passar longos períodos em animação suspensa, mas nada se compara ao recorde que conquistaram agora.
Os rotíferos bdelloides não parecem muito mais complicados do que um tubo digestivo cercado por cílios, mas, tal como nós, eles também possuem tecidos diferenciados e especializados, incluindo até um pequeno cérebro. Isso significa que as descobertas sobre a sua capacidade de sobreviver longos períodos sob congelamento podem ser úteis para as tentativas de aplicar processos parecidos a organismos maiores –preservando, por exemplo, órgãos para transplante por mais tempo.
“É claro que, quanto mais complexo o organismo, mais difícil fica preservá-lo vivo quando congelado. Para mamíferos, hoje isso não é possível”, afirmou o coordenador do estudo, Stas Malavin, do Instituto de Problemas Físico-Químicos e Biológicos de Ciência do Solo em Pushchino, na Rússia. “Mas ver que isso é viável não só em organismos unicelulares como também num organismo com sistema digestivo e cérebro, ainda que microscópico, é um grande passo”, declarou ele em comunicado oficial.
Os rotíferos redivivos que Malavin e seus colegas estudaram pertencem ao gênero Adineta e foram coletados no chamado “permafrost” (solo permanentemente congelado do Ártico) da bacia do rio Alazeya, no nordeste da Sibéria. A profundidade de 3,5 m de onde vieram as amostras, bem como a presença ali de mamíferos da Era do Gelo mumificados e outros indicativos geológicos, sugerem fortemente que os invertebrados de fato passaram as últimas dezenas de milhares de anos congelados.
A idade das amostras –24.485 anos, para ser exato– foi obtida por meio do método do carbono-14, o mais utilizado para datar matéria orgânica.
Os pesquisadores incubaram as amostras em condições de laboratório mais aprazíveis do que as do permafrost e, após um mês, verificaram a presença de diferentes micróbios, além dos rotíferos. A presença de material genético dos pequenos animais no solo antes desse tempo de cultivo confirma que eles estavam lá desde o momento em que aquele pedaço de terra tinha congelado originalmente.
Uma vez descongelados, os invertebrados não perderam tempo e começaram a se reproduzir –o que é bem mais fácil no caso dos rotíferos, já que são animais que adotam uma forma estrita de partenogênese ou “nascimento virgem”, forma de reprodução que não depende do sexo.
Estabeleceu-se assim uma linhagem partenogenética no laboratório russo, a partir da qual foram selecionados 144 indivíduos que passaram por um último desafio. Os rotíferos voltaram a ser congelados (a uma temperatura de 15 graus Celsius, durante uma semana) e depois foram devolvidos à temperatura ambiente. Ao menos alguns sobreviveram ao processo, mas curiosamente não se mostraram mais bem sucedidos nisso do que seus parentes modernos. Isso indica que não havia nada de especial nos rotíferos da Era do Gelo –a impressionante capacidade de sobrevivência ao congelamento seria algo mais geral do grupo.
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