REINALDO JOSÉ LOPES
SÃO CARLOS, SC (FOLHAPRESS) – Há 1,5 milhão de anos, ancestrais da humanidade que viviam na África Oriental estavam usando carcaças de elefantes e hipopótamos para produzir os mais antigos instrumentos de osso da história -ferramentas alongadas, pontudas e pesadonas, que podiam medir até 40 cm de comprimento.
Ainda não está claro qual era o uso dado aos implementos, alguns dos quais lembram vagamente facões. Mas a descoberta é importante por enterrar de vez um velho mito da pesquisa sobre as origens da tecnologia: o de que os membros da linhagem humana teriam demorado vários milhões de anos para perceber o potencial de matérias-primas que não fossem a pedra lascada.
Isso porque, até onde se sabia, os instrumentos feitos a partir de ossos de animais só começavam a ser registrados com alguma frequência a partir de uns 500 mil anos atrás, e ainda assim esporadicamente.
Seu uso mais amplo e sofisticado, servindo como “pecinhas” em ferramentas compostas e ganhando funções delicadas, como as de agulha de costura ou ornamento, estaria restrito ao momento em que os seres humanos de anatomia moderna, ou Homo sapiens, já estavam se espalhando pelo planeta, uns 50 mil anos antes do presente.
Os novos achados na chamada garganta de Olduvai (norte da Tanzânia), se não desmentem totalmente o cenário descrito nos últimos parágrafos, ajudam a relativizá-lo bastante. Em primeiro lugar, a datação de 1,5 milhão de anos mostra que os hominínios (membros da linhagem de ancestrais do ser humano) responsáveis pelos instrumentos eram da espécie Homo erectus, ainda bem distante da nossa.
Segundo os autores do estudo, liderados por Ignacio de La Torre, do Conselho Superior de Pesquisa Científica da Espanha, e Jackson Njau, da Universidade de Indiana (EUA), o local de origem dos artefatos provavelmente ficava perto de rios e lagos. Isso porque há ali considerável abundância de ossos de espécies aquáticas e semiaquáticas de grande porte, como peixes, crocodilos e hipopótamos (o mamífero mais comum entre os fósseis).
De acordo com a pesquisa, publicada na última quarta-feira (5) na revista científica Nature, a presença de carcaças de hipopótamos -uma fonte gigantesca de comida- pode ter atraído os hominínios ao local. Mas claramente eles não se limitaram a retirar toda a carne, gordura e tutano possíveis dos ossos dos bichos.
Um conjunto de 27 fragmentos ósseos achados no sítio arqueológico se encaixam em todos os critérios normalmente usados para identificar a fabricação de instrumentos. Praticamente não há sinais de mordidas de carnívoros neles, nem indícios de que tenham sido pisoteados por animais de grande porte. As modificações na sua estrutura batem com o que seria de esperar se os ossos tivessem sofrido percussão por outras ferramentas, provavelmente de pedra.
Nem todos os ossos transformados em instrumentos podem ser atribuídos com certeza a uma espécie de animal, mas os já identificados correspondem a elefantes (oito deles), hipopótamos (seis) e bovídeos (dois; a categoria abrange tanto búfalos quanto antílopes e outros animais). Todos vêm de ossos compridos dos membros, como fêmures e tíbias (das patas de trás) e úmeros (das patas da frente).
Em muitos casos, há sinais de que os ossos foram preparados para virar instrumentos pouquíssimo tempo depois da morte do animal. Além de cortar um pedaço de um fêmur de elefante, digamos, para que ele tivesse o tamanho desejado, as laterais do fragmento eram desbastadas com cuidado. Também é possível identificar a abertura deliberada de concavidades de um lado do osso, talvez para ajudar o hominínio a segurar o “cabo” do instrumento, além da formação de pontas.
Algumas dessas pontas, aliás, trazem sinais de “atividades percussivas e compressivas”, escrevem os pesquisadores -trocando em miúdos, é possível que os instrumentos fossem usados para bater em alguma coisa ou apertá-la, embora ainda não se saiba exatamente o quê.
Também ainda não está claro o que os achados significam para a história do desenvolvimento das ferramentas de osso. É possível que a prática tenha surgido e desaparecido algumas vezes ao longo da trajetória dos hominínios, ou ainda que a falta de outros exemplos no registro fóssil se explique pela maior dificuldade de preservação, já que instrumentos de pedra duram essencialmente para sempre.