De Madri, de onde edita diariamente há cinco anos o mais importante jornal da Venezuela, Miguel Henrique Otero, 74, contou ao jornal Folha de S.Paulo como o Nacional reagirá ao novo avanço da ditadura contra a liberdade de expressão: “Vamos continuar existindo, mesmo que tenhamos de entregar nossas rotativas e nosso edifício sede”.
O embate dele é contra a intenção declarada por Diosdado Cabello, homem-forte do regime de Nicolás Maduro, que processa o Nacional desde 2015 pela publicação de uma reportagem que o citava em uma investigação de narcotráfico nos Estados Unidos. Naquela época, Cabello era presidente da Assembleia Nacional, e a notícia tinha sido distribuída pelas agências internacionais.
Nesta semana, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) da Venezuela ordenou que o jornal pague US$ 13,4 milhões ao líder chavista, que o processou por difamação. Cabello anunciou que o prédio, ao ser confiscado pela Justiça, será transformado em uma universidade de jornalismo. E que, com as rotativas, imprimirá uma versão de seu famoso programa de televisão de propaganda do regime, “Con el Mazo Dando” (algo como: dando com um tacape).
O Nacional circula desde 1943, quando foi fundado pelo pai de Miguel Henrique Otero, o escritor Miguel Otero Silva. No tradicional jornal, escreveram os principais intelectuais do país, como Arturo Uslar Pietri (1906-2001), e também jornalistas e escritores do Cone Sul que buscaram a Venezuela como refúgio durante as ditaduras dos anos 1970.
Um dos exemplos foi o argentino Tomás Eloy Martínez (1934-2010), que viveu em Caracas e editou o caderno de cultura do Nacional enquanto era perseguido em seu país.PERGUNTA – Depois de seis anos de processo, está surpreso pela sentença?
MIGUEL HENRIQUE OTERO – Não, apenas frustrado. Na Venezuela já não há Justiça independente há tempos. O Judiciário atua de acordo com o que o Executivo ordena. As demoras, as idas e vindas, são apenas para dar a sensação de que o julgamento está correndo pelas vias corretas. Trata-se de uma maneira de disfarçar para não parecer uma ditadura como a chinesa ou a cubana, que limitam os meios de comunicação e ponto.
Na Venezuela, te deixam acreditar que há liberdade de imprensa, ao pressionar e afrouxar, enquanto aos poucos vão te sufocando.A reportagem pela qual a Justiça condenou o Nacional não era uma investigação exclusiva e foi veiculada por outros meios. Nem assim havia um argumento legal possível?
MHO – Não, justamente pelo que afirmei. Você apela, eles dizem que vão averiguar, enquanto isso você segue seu trabalho sob ameaça. Depois, eles decidem um passo mais do processo, e assim esticaram esse sistema de pressão por seis anos, junto com outros, como perseguir anunciantes para que não pudéssemos sustentar o produto e outras estratégias, sempre indiretas, mas eficientes no longo prazo.
A matéria da qual Cabello não gostou também foi publicada pelo ABC, da Espanha, e pelo Wall Street Journal. Ele tentou mover processos contra essas publicações, mas claro que não deu em nada. Meses depois, a DEA [agência antidrogas dos EUA] lançou uma recompensa pela entrega de Diosdado Cabello por US$ 10 milhões de dólares, ou seja, a investigação existia, sempre existiu. Por isso, Cabello é procurado pelos EUA e não pode sair do país. Processar o Nacional por isso é tentar tapar o sol com a peneira.O Nacional já deixou de circular em papel em 2018. Como vai essa operação?
MHO – Com dificuldades, não temos lucros, mas pagamos nossa existência. Tivemos de passar para o online porque o governo colocou travas enormes para que comprássemos dólares para comprar papel, depois fez pressão junto aos anunciantes. Agora, a operação está pelo menos mais barata. Mas é complicado ter publicidade, como em todas as partes do mundo. Ainda assim, seguimos batalhando.Nem sempre o regime permite que a página siga no ar. Como é essa dinâmica?
MHO – Para não parecer que são uma ditadura como a China, a Coreia do Norte ou Cuba, eles não te proíbem de existir, fazem de conta que você opera com liberdade, mas seletivamente escolhem horários ou momentos em que matérias importantes estejam no ar para cortar o seu sinal, derrubar a sua página. Aí acionamos endereços do jornal no exterior, e a página do Nacional pode ser lida por quem está fora do país, mas fica bloqueada na Venezuela. Horas depois, ela volta. Fazem o mesmo com jornais independentes, como o Efecto Cocuyo.
A ideia é fingir que não são o que todos já sabemos que são: uma ditadura.E qual é o plano agora?
MHO – Nós não vamos pagar o dinheiro que Cabello pede. Aliás, não nos explicaram como chegaram a esse valor. O que vai acontecer é que, ao não pagarmos, vão sequestrar nossos ativos. Ou seja, haverá um confisco do nosso edifício, das nossas rotativas. Cabello afirmou que pretende fazer uma universidade de jornalismo no lugar, além de imprimir uma versão em papel de “Con El Mazo Dando”. Já até mostrou uma versão de como seria em seu programa.
Pois bem, nós vamos continuar editando a página online, e os jornalistas trabalharão de suas casas e nas ruas de Caracas e das cidades onde estão.Não tem medo de que sejam perseguidos?
MHO – A maioria dos jornalistas venezuelanos já deixou a profissão ou a Venezuela. Os que seguem lá são os mais aguerridos e que não se intimidam com isso. Vão continuar nas ruas, vão assinar com outros nomes ou publicar material anônimo, para não serem perseguidos. Ninguém que esteja trabalhando hoje com jornalismo na Venezuela o faz sem a convicção de que é preciso correr esses riscos. E nós vamos apoiá-los como pudermos.Não há como recorrer dessa sentença na Venezuela, mas e fora dela?
MHO – Estamos fazendo de tudo. Divulgando a causa do ataque à liberdade de expressão, apresentando a denúncia à CIDH [Comissão Interamericana de Direitos Humanos], esperamos ter o apoio necessário para que se sintam pressionados. Mas o principal é fazer o diário no dia a dia e demonstrar que não estamos fazendo nenhuma concessão.
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