SÃO PAULO, SP, E BELO HORIZONTE, MG (FOLHAPRESS) – Num domingo de março, há dois anos, no Capão Redondo, bairro periférico de São Paulo, a exceção à regra aconteceu.
O prédio da Fábrica de Cultura se tornou um lugar onde o personagem Link, do jogo “Zelda”, era uma menina negra de olhos escuros. Foi na PerifaCon, evento que se propõe a levar cultura nerd para mais perto da periferia.
O cosplay do herói loiro de olhos claros acena para um problema no universo dos games -não são tantos os personagens negros, e os que existem nem sempre passam uma imagem boa. Em compensação, os que jogam videogame no Brasil, em sua maioria, têm a pele mais escura do que a de Link.
Num país em que renda e cor estão intimamente interligados, mais da metade dos gamers são pretos ou pardos. São 50,3%, segundo a Pesquisa Game Brasil, a PGB 2021, espécie de censo do ecossistema gamer nacional.
No Brasil de 2021, não dá para dizer que videogame é coisa só de rico. Quase metade dos que consomem jogos, 49,7%, são das classes C, D e E. Cerca de um terço dos que jogam videogame vem de famílias de renda de até R$ 2.090. Outro terço tem renda familiar de até R$ 4.180. Os dados são da PGB.
Mas como explicar isso num momento em que um console novo pode custar R$ 7.000? É que a plataforma preferida dos entrevistados pela pesquisa é o celular -41,6% afirmaram preferir jogar no smartphone, enquanto só 25,8% preferem consoles.
Segundo a pesquisa, 60,8% dos que jogam em celulares são das classes C, D e E. Dos que jogam em console, 59% são das classes A e B. Entre os que jogam no computador, 57,4% são das classes A e B –para aguentar os jogos que fazem sucesso atualmente, a máquina precisa ser potente, não adianta tentar jogar em computador capenga.
“A galera não consegue ter acesso aos consoles justamente pelo preço. E aí as alternativas tendem a crescer. Cada vez mais os jogos mobile vão tomar a periferia. Quem tende a perder são essas marcas [de console], porque a galera até chega a consumir esses videogames, mas são os consoles mais antigos”, diz Andreza Delgado, uma das criadoras da PerifaCon e do PerifaGamer, iniciativa que busca dar visibilidade à comunidade gamer nas periferias do Brasil.
Segundo a PGB, 72% dos brasileiros têm costume de jogar games, sendo que mais da metade são mulheres. Desses, quase metade, 45,4%, afirma que só faz download de jogos gratuitos, e 44,9% dizem que só compram games de vez em quando. Só um em cada dez afirma comprar jogos frequentemente.
Hoje vivemos um surto mundial de jogos “battle royale”, que são games multiplayer de sobrevivência –no esquema “Jogos Vorazes”, todos tentam derrubar um ao outro, e ganha a partida o último sobrevivente. “Fortnite” e “PUBG” são alguns dos títulos mais famosos.
Um game que vem crescendo nos últimos tempos é o “Free Fire”, que é exclusivo para dispositivos móveis. De gráficos mais simples que os de “Fortinite”, costuma rodar tranquilamente em celulares intermediários.
Cerca de 80% dos brasileiros com mais de dez anos de idade têm um celular, segundo o Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia, o IBGE, em pesquisa do ano passado. Não por acaso, o “Free Fire” tomou conta das periferias brasileiras.
O jogo lançado em dezembro de 2017 já tem campeonatos dedicados a jogadores vindos das periferias do Brasil, como a Copa das Favelas Free Fire e a Taça das Favelas Free Fire. Virou um fenômeno de cultura pop. O DJ Alok ganhou um personagem jogável e até Mano Brown já lançou música sobre o jogo, com direito a clipe do Kondzilla.
Só que nem sempre essas pessoas se veem representadas nos games que jogam. Em “Free Fire”, a maioria dos personagens é branca.
“Tem esse problema muito grande de representatividade, mas eu acho que isso é só um reflexo da nossa sociedade”, diz Andreza Delgado. “Eu sinto uma grande mudança, que vem de um esforço coletivo. Um pack novo com personagens negros geralmente vem depois de muita luta, da galera falando [na internet] sobre representatividade.
Um dos carros-chefe do lançamento do PlayStation 5 foi “Spider-Man: Miles Morales”, que traz um protagonista negro e latino. Morales tem um perfil bem distinto de outro famoso personagem negro dos games, o protagonista de “GTA: San Andreas”, o CJ, um criminoso.
“A indústria de games há muitos anos representa pessoas negras de forma sexualizada ou marginalizada”, afirma a desenvolvedora Raquel Motta, do estúdio Sue The Real, especializado em jogos com temáticas afro-brasileiras.
“Mas isso está mudando, principalmente porque o consumidor cobra. Hoje a internet tem um impacto muito grande e as pessoas têm um acesso muito mais fácil às empresas.” Segundo Motta, a tendência é que uma nova geração de personagens não estereotipados passe a habitar mais os jogos. “Não tem jeito, se não veio antes vai vir agora”, diz.
“A gente tem que cobrar essa mudança ou parar de consumir esse tipo de conteúdo. Não faz sentido a gente consumir um produto que é agressivo com o negro.”
Alimentam essa tendência as crescentes pressões por diversidade nos estúdios de games, inclusive nos que fazem AAA, que são os jogos de grande abrangência. Mas são os produtores independentes –mais livres de amarras corporativas e de pressões de grandes investidores por retorno financeiro– que demonstram se aventurar mais em narrativas ligadas às periferias e com personagens não brancos.
“Miles Morales” fez barulho com seu Homem-Aranha negro, mas não se pode ignorar que se trata de um spin-off de uma franquia já muito bem estabelecida, que tem um branco como protagonista original.
No Brasil, o estúdio Aoca Game Lab ambientou o jogo “Árida” no sertão baiano do século 19, com acenos ao contexto da Guerra de Canudos. “Dandara” é um jogo que traz uma versão moderninha da companheira de Zumbi dos Palmares e entrou na lista da revista Time dos melhores jogos de 2018, ao lado de títulos como “God of War” e “Red Dead Redemption 2”. Sue The Real, o estúdio de Raquel Motta, tem em seu portfólio jogos como “Angola Janga”, inspirado na HQ de mesmo nome, sobre o quilombo dos Palmares, e “One Beat Min”, que simula batalhas de beat box.
Também nas competições de esports, pretos são minoria. “Eu acompanho o Campeonato Brasileiro de League of Legends e quando eu vejo que só tem pessoas brancas eu até perco a vontade de assistir”, diz a streamer Sher Machado, que faz parte do Wakanda Streamers, iniciativa que promove e impulsiona a comunidade gamer negra.
“Quando ‘Wild Rift’ [versão mobile de ‘League of Legends’ recém-lançada] saiu, eu pensei que estavam lançando um jogo para ser mais acessível para as pessoas, como o ‘Free Fire’. Mas quando eles lançam o material de divulgação e só põem ali pessoas brancas e cis, não me sinto representada. Põem um negro no fim, como se estivessem falando ‘olha, temos uma pessoa negra aqui’.”
“Não acho que a representatividade tem que ser uma esmola, um personagem, um jogador. A gente não quer ser incluído, o espaço já pertence a nós. Então eu não quero esmola, isso é meu por direito.”
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