A chance de um filho repetir a baixa escolaridade de sua família no Brasil é o dobro da probabilidade de que isso ocorra nos EUA.
Em média, quase 6 em cada 10 brasileiros (58,3%) cujos pais não tinham o ensino médio completo em 2014 –último ano para o qual há dados– também pararam de estudar antes de concluir esse ciclo.
Entre os americanos, esse percentual cai à metade, para 29,2%. Já a média na OCDE, grupo que reúne quase quatro dezenas de nações ricas e emergentes, era de 33,4%.
Se o filho brasileiro pertencer a grupos populacionais menos favorecidos, a distância é ainda maior.
Entre o estrato 20% mais pobre da população brasileira, 80,8% dos filhos cujos pais (palavra empregada, no estudo, como plural de pai) não tinham o ensino médio completo repetiram esse desfecho educacional. No grupo dos 20% mais ricos do país, esse percentual era de 32,6%, um pouco abaixo da média da OCDE.
O contraste entre brancos e negros brasileiros também é significativo. Entre os filhos de pais pretos e pardos que não terminaram o ensino médio, 64% não avançaram além disso. Nas famílias brancas, essa proporção era de 51,6%.
Esse conjunto de dados é parte de um estudo inédito do Imds (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social), que situou as transformações educacionais ocorridas entre gerações brasileiras em um amplo contexto internacional.
“O fato de que há grande desigualdade educacional [no Brasil] decorrente da incapacidade da sociedade de fazer avançar os filhos dos mais pobres (os menos escolarizados de suas respectivas gerações)”, ressalta um trecho da pesquisa.
A mobilidade educacional ainda baixa entre os nascidos em famílias menos favorecidas ajuda a perpetuar a alta disparidade de renda no país.
“São dois problemas distintos, que andam juntos”, afirma outra parte do estudo, cujo título é “Mobilidade Intergeracional de Educação: Comparações Internacionais”.
O trabalho mostra que, desde a década de 1940, ocorreram ganhos expressivos de escolaridade no Brasil. Mas também revela que enormes barreiras persistem.
“Essa pesquisa avança em relação a estudos anteriores porque mostra tanto uma fotografia atual quanto um filme do que ocorreu em sucessivas gerações”, diz o economista Paulo Tafner, diretor-presidente do Imds.
O trabalho é dividido em duas partes. A primeira é a fotografia do passado recente mencionada por Tafner. Nesse caso, o estudo se refere à população entre 24 e 65 anos.
A partir da análise de dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e da OCDE, os pesquisadores apresentam um retrato da escolaridade alcançada pelos filhos adultos em relação à de seus pais.
Foram feitas comparações tanto dos resultados da média do Brasil em relação ao desempenho das nações da OCDE quanto entre diferentes grupos populacionais brasileiros, em recortes de raça, renda e gênero.
A segunda parte teve como foco dados do Banco Mundial que o Imds computou para analisar o progresso educacional ao longo das gerações nascidas entre 1940 e 1980, em mais de cem países.
O filme resultante dessa análise revela que o progresso já conhecido do Brasil em termos absolutos –no que se refere à escolaridade média da população– também foi marcante no contexto internacional.
Oito em cada dez brasileiros nascidos na década de 1980 estudaram mais do que seus pais. Entre 51 nações de renda média alta –grupo ao qual o Brasil pertence–, a relação é de seis em cada dez pessoas.
Essa análise –que excluiu os filhos cujos pais tinham concluído o ensino superior– pode capturar avanços mais sutis de escolaridade, já que os dados do Banco Mundial incluem cinco níveis de estudo, ante três no caso dos números da OCDE.
“O aumento rápido da mobilidade educacional do Brasil, principalmente, a partir dos anos 1960, é bastante surpreendente”, afirma Tafner.
O pesquisador explica, porém, que esse progresso, puxado pela conquista do ciclo básico educacional, não foi acompanhado por um avanço significativo na aquisição do diploma universitário.
A parcela dos brasileiros nascidos na década de 1980 que, hoje, têm o ensino médio completo é 66,6%, quase o triplo dos 23,4% registrados entre seus pais. Quando a mesma comparação é feita com o ensino superior, essas fatias caem para, respectivamente, 26% e 11%.
Além disso, entre a população de baixa renda, mesmo os pais que conquistaram um diploma universitário têm grande dificuldade em “transmitir” essa herança positiva para seus filhos.
Entre os 20% mais pobres do país, apenas 27,7% dos filhos cujos pais tinham ensino superior, em 2014, atingiram essa mesma escolaridade. Na população 20% mais rica, a fatia dos filhos que, como seus pais, possuíam curso universitário era de 81,5%.
“Isso mostra que há uma enorme fragilidade dos brasileiros mais pobres, cujas conquistas podem ser, facilmente, perdidas”, diz o economista Fernando Veloso, do Ibre e da EPGE, centros que fazem parte da FGV-Rio.
De acordo com Tafner, o acesso da população mais vulnerável ao ensino superior ocorre, muitas vezes, via cursos menos valorizados no mercado de trabalho. “Esses pais terão menos renda para garantir a educação de seus filhos do que aqueles que seguiram carreiras com maior remuneração”, afirma o economista.
A pedagoga Catarina de Almeida, da UnB (Universidade de Brasília), ressalta que, com a adoção da política nacional de cotas com critérios raciais e de renda nas universidades públicas, em 2012, a fatia de brasileiros de estratos menos favorecidos com ensino superior tende a seguir aumentando.
“É uma oportunidade que não existia quando eu, que sou negra, ingressei na universidade, em meados dos anos 1990”, afirma a pesquisadora.
Almeida conta que foi a primeira pessoa de sua numerosa família a concluir o ensino superior e, até hoje, é a única que tem mestrado e doutorado entre seus parentes.
“Meus pais eram analfabetos. Minha mãe teve 15 filhos, dos quais 4 morreram. Apenas quatro irmãos e eu concluímos o ensino superior, outros não terminaram nem o ensino fundamental.”
Segundo ela, embora as cotas nas universidades tenham sido um passo crucial, elas precisam ser complementadas por outras medidas, hoje, inviabilizadas pelo limite à expansão dos gastos públicos.
“A cota é uma política de entrada. Faltam políticas que garantam a permanência, na universidade, desses jovens. Eles enfrentam dificuldades, que vão da baixa renda familiar a uma base escolar anterior mais fraca.”
Dificuldades financeiras como as mencionadas por Almeida foram o principal motivo que impediu José Ilton Santos Dantas, 18, a ingressar na faculdade após concluir o ensino médio.
“Quase fiz, mas estava sem dinheiro”, afirma.
Caçula entre seis filhos, Dantas ainda estudou dois anos a mais do que os pais, que chegaram apenas ao primeiro ano do ensino médio. Um de seus irmãos, conta, chegou a começar o ensino superior. O curso, porém, precisou ser trancado.
A prioridade na casa em que vivem hoje, em Francisco Morato, na região metropolitana de São Paulo, é conseguir emprego e ajudar no aluguel e demais contas da casa.
“Meu pai faleceu em 2018. Por isso estou procurando serviço. Sem ele, todo o mundo precisa ajudar no aluguel”, diz. “Fiz muitos bicos de ajudante de pedreiro, mas o serviço terminou. Agora quero pegar o que aparecer.”
O objetivo de ajudar jovens como Dantas é o que leva Allan Greicon, 28, a dividir seu tempo entre o trabalho na Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Governo de São Paulo e a coordenação do cursinho pré-vestibular popular Emancipa Jardim Jaqueline.
Nascido e criado em Itapevi, na periferia da Grande São Paulo, Greicon atribui sua conquista do diploma da graduação em relações internacionais na USP (Universidade de São Paulo) à dedicação e ao estímulo constantes que recebeu da mãe, a cozinheira Val Macedo.
“Meu pai morreu quando eu tinha seis anos, deixando para minha mãe apenas contas a pagar”, diz ele, que é assessor técnico na área de gestão de programas de educação profissional do governo paulista.
Segundo Greicon, embora não tenha completado o ensino fundamental, sua mãe sempre acreditou na importância da educação e trabalhou, de forma dura e incansável, para permitir que ele e seu irmão mais velho se dedicassem apenas aos estudos.
“Ela não tinha tempo de nos acompanhar, de ir a reuniões da escola, mas ligava para os professores para se informar sobre nosso desempenho”, afirma ele.
Além do apoio da mãe, Greicon sempre se inspirou no irmão mais velho, que ingressou um ano antes do que ele na Universidade de São Paulo, onde cursou jornalismo. Os dois fizeram cursinho pré-vestibular popular para reforçar sua base educacional.
Greicon concorda com a professora Catarina, da UnB, que o Brasil precisa de políticas educacionais complementares às existentes, hoje, para garantir que jovens de baixa renda tenham mais chances de ir além da escolaridade de seus pais.
“Os cursinhos populares são importantes, em primeiro lugar, porque levam os estudantes a sonhar com a universidade, porque esse não é um sonho óbvio para um jovem de baixa renda”, diz.
Além disso, ressalta, as famílias precisam ter renda para atingir um nível de bem-estar suficiente para que seus filhos possam, de fato, se dedicar aos estudos.
“É muito difícil estudar com fome”, diz Greicon.
Às barreiras já existentes ao avanço educacional dos brasileiros menos favorecidos se somam, agora, outras criadas pela pandemia do coronavírus.
“Os alunos de baixa renda têm sido prejudicados pela falta de protocolos nacionais, que deveriam ter sido adotados havia muito tempo pelo Ministério da Educação”, diz Veloso, da FGV.
“O descalabro que vemos na saúde, nesta crise, ocorre também na educação”, afirma o pesquisador.
Segundo especialistas, as perdas decorrentes do acesso precário de alunos pobres à educação na pandemia poderão ser permanentes e levar até a um retrocesso na escolaridade da geração jovem atual em relação à de seus pais.
Veloso ressalta que o quadro é agravado pela piora das perspectivas futuras de trabalho para a população menos escolarizada, em meio à aceleração de uma tendência, anterior à crise, de substituição da mão de obra menos qualificada por tecnologias cada vez mais avançadas.
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