Entenda a crise dos shows no rastro dos cancelamentos de Ivete Sangalo e Ludmilla

(FOLHAPRESS) – Depois de tanta festa, é difícil evitar a ressaca. Ivete Sangalo e Ludmilla ainda se recuperam do desgaste causado pelo cancelamento das megaturnês que prometeram fazer por arenas Brasil afora, quando apresentações em grandíssima escala pareciam uma aposta certa de sucesso. Mas elas não são as únicas. Dois anos após a retomada de uma programação cultural intensa, no rastro do frenesi causado pelo fim da pandemia, o mercado de shows e festivais entrou em crise.

 

No entanto, mais do que indicar a alta ou a baixa de um artista ou uma produtora, com seus fãs e detratores que rivalizam nas redes sociais, a recessão reflete uma série de fatores sobre a indústria da música ao vivo, inclusive a crise de imagem gerada para os shows depois da morte de uma jovem numa apresentação de Taylor Swift, no ano passado, e a de um rapaz no festival I Wanna Be Tour, neste ano, ambas no Rio de Janeiro.

O declínio se traduz em números. Segundo o Mapa dos Festivais, estudo feito pela empresa de curadoria musical Bananas Music, a quantidade de eventos aumentou 138% no ano passado, com a criação de 71 festivais. Mas só neste ano nove foram adiados e outros nove foram cancelados, enquanto empresas importantes do ramo perderam o seu valor.

É o caso da Time for Fun, a T4F, que teve uma queda de cerca de 65% no valor de suas ações. Em março de 2022, quando a produtora voltou a realizar o Lollapalooza depois da paralisação pandêmica, elas eram vendidas a R$ 4,72. Hoje, custam R$ 1,62.

A produtora, responsável pela turnê de Taylor Swift, vai na contramão do índice Ibovespa, que reúne as principais empresas do mercado brasileiro e teve alta de 7,6% no mesmo período. Até a publicação deste texto, a T4F não respondeu ao pedido de entrevista da reportagem.

Os maiores festivais do país também são atingidos, ainda que o impacto sobre eles seja menor, devido a fatores como a presença de estrelas internacionais e o investimento milionário de patrocinadores e da mídia.

O público do Lollapalooza, por exemplo, diminuiu 20% neste ano, enquanto o Rock in Rio, a menos de dois meses de seu início, ainda tem ingressos à venda para três de seus sete dias. Em comparação, as entradas da edição anterior se esgotaram com quatro meses de antecedência.

A Festa do Peão de Barretos, considerada o templo do sertanejo, enfrenta uma situação parecida. Ainda tem ingressos disponíveis para todos os seus dias, a partir de R$ 40, a menos de um mês do início do evento, que acontece no interior paulista.

A disponibilidade de entradas demonstra uma queda de interesse do público, ainda que festivais como o Rock in Rio, por exemplo, tenha preparado um line-up com mais novidades para este ano, como a contratação de artistas do sertanejo, o gênero musical mais ouvido do país, em razão das festividades de seus 40 anos.

A produtora 30e, que realizaria as turnês de Ivete Sangalo e Ludmilla, embora negue que o mercado passe por uma baixa, diz que vivemos um período de acomodação. “O público não vive mais a ânsia de estar em todos os eventos”, diz, em nota por email. “Muitos eventos não conseguiram se manter porque são necessários anos até se consolidar, gerar lucro e ter seu espaço garantido.”

Segundo o economista Fábio Rodrigues, do Insper, a crise do setor está mais ligada à mudança no comportamento do público do que à conjuntura econômica do Brasil -o índice de desemprego, por exemplo, está em queda em relação aos anos anteriores, quando os shows e festivais estavam em alta.

“As pessoas estavam desesperadas para sair de casa e viver, então se criou um mercado que não se sustenta. O público ainda quer entretenimento, mas não a qualquer custo e a todo momento”, ele afirma. “Ninguém tem dinheiro para tudo.”

O preço dos ingressos desses eventos é uma reclamação constante do público. Ainda segundo o levantamento da Bananas Music, o valor médio da entrada de um festival é R$ 329. Mas não é raro encontrar cifras mais altas. O Rock in Rio está cobrando R$ 795 para a entrada de um dia, e o Lollapalooza cobrou R$ 850, além da taxa de serviço de 20% para a compra pela internet.

Todos os valores estão acima dos R$ 300 que a maior parte do público diz considerar aceitável por um ingresso, de acordo com uma pesquisa feita pelo Serasa em parceria com o instituto Opinion Box.

E os preços só aumentam. Em dez anos, o valor do ingresso diário do Lollapalooza subiu 193%, e o do Rock in Rio, 148%. São altas maiores do que a inflação acumulada no período, de cerca de 80%, segundo o IPCA, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo.

As maiores altas são recentes. Neste ano, a entrada do Lollapalooza ficou 43% mais cara, e a do Rock in Rio, 27,2%. São aumentos que também estão acima da inflação, de 4,66% para o período de realização do evento paulistano e de 8,65% para o carioca.

As turnês de Ivete Sangalo e Ludmilla tinham ingressos a partir de R$ 100, mas havia discrepâncias entre as cidades. Para assistir ao show de Ludmilla em Manaus, seria preciso desembolsar no mínimo R$ 190, quase o dobro do que em São Paulo.

Entre as cidades por onde a cantora passaria, porém, a capital amazonense é a que tem a menor renda média por habitante, segundo um estudo da Fundação Getúlio Vargas a partir de dados do Imposto de Renda.

Dessa forma, a entrada da apresentação representaria quase 20% dos R$ 1.000 que, em média, um manauara ganha por mês. Isso sem contar os gastos com deslocamento e alimentação. Segundo o Serasa, o valor empenhado em comida e bebida, vendidas a preços inflacionados nos eventos, gira em torno de R$ 200, o que poderia comprometer mais 20% da renda de um fã de Manaus.

As cantoras atribuíram o cancelamento de suas turnês a uma suposta falta de condição logística da produtora 30e para realizar os eventos, sem detalhes ou explicações. Elas não quiseram dar entrevistas. Já a 30e afirmou que teve “boas vendas em algumas cidades e não tão boas em outras”, mas que estava disposta a contornar a situação adotando estratégias como o adiamento de alguns shows, o cancelamento de outros e o reforço na divulgação de todos, mas as artistas não aceitaram um acordo e “optaram por um cancelamento unilateral”.

Inevitavelmente, os cancelamentos geraram uma crise de imagem para os envolvidos, ante o espanto do público. Como artistas com números superlativos no streaming não conseguiram vender ingressos suficientes para uma turnê? O caso ilustra outra crise da indústria musical –a distância entre o sucesso na internet e no mundo de carne e osso.

Luísa Sonza, com seus 13 milhões de ouvintes mensais no Spotify, sabe disso. Sua última turnê teve shows cancelados e adiados, com ampla distribuição de ingressos para agentes do mercado, influenciadores e jornalistas. Ainda assim, houve apresentações, como a de João Pessoa, que virou notícia nos jornais locais pelo espaço vazio na casa de shows.

Isso porque, mesmo que estivesse em alta nas redes sociais, na crista de polêmicas geradas por seu último namoro, com o influenciador Chico Moedas, Sonza havia sido cautelosa –os shows aconteceram em casas menores. Em São Paulo, foi no Espaço Unimed, com capacidade para 8.000 pessoas, quase cinco vezes menor do que a do Allianz Parque, que Ivete Sangalo e Ludmilla desejavam.

Uma das principais justificativas para o aumento no preço dos ingressos, sobretudo os de shows e festivais que reúnem astros internacionais, é a alta do dólar, já que os cachês são negociados na moeda americana, com uma cotação que dobrou na última década.

Mas o cachê dos brasileiros também subiu. Segundo produtores e funcionários de empresas do ramo ouvidos em anonimato -uma condição comum imposta à reportagem, já que a maior parte de seus contratos têm cláusulas rígidas de confidencialidade-, a razão do aumento é a alta demanda de contratações.

Um dos maiores nomes contemporâneos do pop, Jão, que encerra sua turnê nas próximas semanas, ilustra isso. Antes da pandemia, seu cachê era de R$ 90 mil. Em 2022, com a retomada dos shows, o valor quase triplicou, para R$ 250 mil, segundo um de seus empresários. No fim do ano passado, Jão já cobrava R$ 600 mil –o valor pago pela prefeitura da capital de Sergipe para um show.

Em que pese o aumento de seguidores e de “plays” que o cantor teve no streaming, é um aumento superlativo, de 566%. E Jão não é o único. Outro exemplo é Gusttavo Lima, o mais famoso dos sertanejos. Hoje, ele cobra até R$ 1,2 milhão por show, um aumento de 70% em relação aos R$ 700 mil cobrados antes da pandemia, conforme demonstram seus contratos com prefeituras.

As prefeituras, a propósito, também estão inflando os cachês, dizem os produtores. A Virada Cultural da capital paulista deste ano, por exemplo, foi a mais cara da história. Se em 2022 o show mais caro contratado pela prefeitura custou R$ 300 mil aos cofres públicos, neste ano oito cachês ultrapassaram esse valor.

Nos rincões do país, prefeitos têm gastado milhões para levar cantores de sucesso a cidades com poucos milhares de habitantes, não raro se aproveitando dos shows para fazer propaganda e tentar se reeleger.

Os showmícios são proibidos desde 2006, mas não é difícil encontrar nas redes vídeos em que os artistas chamam os políticos para subir ao palco, elogiam a sua gestão e puxam até coros de “já ganhou”, ao se referir ao pleito marcado para outubro.

Diretor da Abrape, a Associação Brasileira de Produtores de Eventos, Nei Ávila afirma que precisou cancelar um de seus eventos, o Forró do Piu Piu, em Amargosa, no centrosul da Bahia. Em sua última edição, com um line-up que incluía Gusttavo Lima, o evento foi um sucesso de público, mas não deu lucro.

“Na Bahia, que tinha ao menos nove grandes eventos privados, com 20 anos de tradição, quase todos foram cancelados. Às vezes, o artista que eu contrato faz um show de graça noutra cidade a 30 quilômetros de distância”, diz Ávila, que neste ano produziu o festival beneficente Salve o Sul, no Allianz Parque, em São Paulo.

“Os shows privados têm compromisso com uma planilha de custo e a saúde financeira. A iniciativa pública não, porque as prefeituras nem pechincham nos cachês. Eles não têm necessidade de vender ingresso.”

As marcas também estariam inflacionando os cachês, segundo os produtores. O caso mais expressivo foi o de Madonna, em maio, que reuniu cerca de 1,5 milhão de pessoas na praia de Copacabana, nas estimativas da prefeitura carioca.

A apresentação foi paga pelo banco Itaú, que fez parcerias com a cervejaria Heineken e outras empresas para viabilizar o cachê de R$ 17 milhões da americana. Madonna também participou de uma campanha publicitária do banco, gravada na Ópera de Paris. O cachê do comercial, exibido massivamente na televisão e nas redes sociais, não foi revelado pelo banco.

Agora, será a vez de a Budweiser bancar um show com Bruno Mars, outra estrela americana da música pop. A apresentação, em outubro, não é aberta ao público como a de Madonna, mas tampouco tem ingressos à venda. As entradas serão sorteadas a partir de doações ao Rio Grande do Sul, numa campanha para arrecadar fundos para os gaúchos enfrentarem a crise causada pelas enchentes.

Tanto por parte das marcas quanto das prefeituras, há interesses na contratação desses artistas. É que se associar ao nome deles pode não só aumentar a sua popularidade nas redes sociais como até lavar a imagem de uma instituição que enfrenta crises de imagem recorrentes, caso dos bancos, num movimento que os especialistas em marketing de influência chamam de “art washing”, ou lavagem com a arte.

Em paralelo, aumentou o custo de produção dos eventos, principalmente devido à escassez de fornecedores, que subiram os preços ante a alta demanda registrada depois da pandemia. Antes, a estrutura de palco para uma festa de 10 mil pessoas, por exemplo, custava em torno de R$ 150 mil, e hoje sai por no mínimo R$ 220 mil, segundo os produtores.

Dessa forma, é difícil para uma empresa realizar um evento com ingressos a preços atrativos e que ainda gere lucro. As turnês de estrelas internacionais, como as de Taylor Swift e The Weeknd ou dos grupos Coldplay e RBD, são exceções.

Esses shows, que causam até brigas entre fãs e cambistas na busca por um ingresso vendido a milhares de reais, fogem à regra porque os artistas raramente se apresentam no país. Embora tenha feito um “pocket show” para a imprensa nos anos 2010, ao lado da sertaneja Paula Fernandes, Taylor Swift nunca tinha se apresentado ao público brasileiro.

É difícil os shows nacionais terem uma procura alta assim. Para as massas, pode não haver sentido em pagar para assistir a um artista que fez ou fará um show gratuito bancado por uma prefeitura ou uma marca, ainda que as apresentações possam ser diferentes, com mais investimento em elementos como cenografia, figurino e tecnologia.

Exceções são as apresentações incomuns, como as de Caetano Veloso e Maria Bethânia, com uma turnê que começa em agosto. É difícil ver os irmãos cantando juntos, assim como os Titãs, que se reuniram na turnê “Encontro”, no ano passado, depois de 30 anos separados.

Por ser um evento raro, os Titãs reuniram 750 mil pessoas, em 47 shows, com 26 deles esgotados. O Natiruts segue o mesmo caminho, porque sua turnê em curso marca o fim do grupo. Até agora, são 500 mil ingressos vendidos, segundo a produtora 30e, a mesma que faria os shows de Ivete Sangalo e Ludmilla.

Mas Taylor Swift é uma só, os Titãs não existem mais e o Natiruts está no mesmo caminho, lembra Nei Ávila, o diretor da Associação Brasileira dos Promotores de Eventos. “Muita gente achou que estávamos num foguete que nunca ia parar de subir, mas a realidade é outra. Curtida em rede social não cola para quem paga cachê, artistas que não colaboram também não vendem ingressos, e precisamos nos ajustar, senão o foguete vai é cair.”

Leia Também: Irmão de Rodrigo Faro é assaltado e feito refém dentro de casa