BÁRBARA BLUM
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Logo depois de aprovada a urgência do projeto de lei 1.904, o PL Antiaborto por Estupro, que equipara a pena de aborto à de homicídio para procedimentos realizados em caso de estupro quando a idade gestacional é superior a 22 semanas, o Cristo Redentor pipocou nas redes sociais vestido como uma aia.
Numa ilustração compartilhada à exaustão na internet, aquele que talvez seja o símbolo máximo do Brasil aparece vestido como uma personagem do romance “O Conto da Aia”, publicado pela canadense Margaret Atwood em 1985. O Cristo veste uma túnica vermelha e um chapéu branco, que é uma mistura de cabresto com o visual das colonas protestantes americanas.
O protesto visual, do ilustrador Cristiano Siqueira, conhecido nas redes como @CrisVector, ultrapassa as 45 mil curtidas no Instagram e 500 mil visualizações no X, o antigo Twitter. Além disso, foi compartilhado por personalidades como a vereadora Monica Benício, do PSOL do Rio de Janeiro, viúva de Marielle Franco.
No livro de Atwood, transformado em série em 2017, as mulheres são vítimas em uma sociedade misógina distópica chamada Gilead, que as divide entre férteis e inférteis. As férteis se tornam parideiras e dão à luz compulsoriamente a bebês frutos de estupros. O lema da nação, no livro, é “God bless the fruit”, ou Deus abençoe o fruto.
Apesar de ficcional, não é difícil traçar paralelos com o conteúdo do PL Antiaborto por Estupro, que surge na esteira de uma bateria de investidas antiaborto no Brasil.
De autoria do deputado Sóstenes Cavalcante, do PL do Rio de Janeiro, o projeto visa alterar o Código Penal de 1940, que cria exceção de punibilidade em dois casos de aborto –risco à vida da gestante e estupro. O terceiro caso livre de punição, quando há anencefalia fetal, veio por meio de uma decisão do Supremo, em 2012.
Caso o projeto seja aprovado nas duas do Congresso e sancionado pelo presidente, a mulher que abortar depois das 22 semanas em casos de estupro poderá ser punida com pena de homicídio simples, que vai de seis a 20 anos de prisão.
Já a pena prevista para estupro no Brasil é de seis a dez anos. Quando há lesão corporal, de oito a 12 anos. Especialistas avaliam que as principais afetadas seriam meninas, uma vez que são elas que costumam demorar mais para perceber a gestação e procurar os serviços de saúde.
O cenário brasileiro não é o único associado à distopia de Atwood. Segundo a pesquisadora Ana Rusche, que é doutora em estudos literários pela Universidade de São Paulo, “O Conto da Aia” foi ligado antes à ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016.
Ela lembra que, durante a campanha presidencial, o então candidato ficou marcado por posicionamentos misóginos, como a frase “grab them by the pussy”, ou “agarre-as pela xoxota”. Em seus primeiros meses de mandato, o republicano viu várias manifestações feministas de protesto se alastrarem. Numa delas, em Nova York, Rusche diz ter visto o cartaz “faça de Margaret Atwood ficção de novo”, um trocadilho com o mote trumpista sobre tornar a América grande novamente.
“O Conto da Aia” nada tinha a ver com Trump. Segundo Rusche, Atwood o escreveu como uma mulher branca canadense que temia o avanço de Margaret Thatcher, ex-primeira-ministra do Reino Unido, e Ronald Reagan, que comandou a Casa Branca, nos Estados Unidos.
Esse visual das aias, aliás, era fruto apenas da imaginação dos leitores até abril de 2017, quando passou a vestir as atrizes da série que estreava no serviço de streaming Hulu, sob a batuta do diretor Bruce Miller.
“No livro, essa ideia do chapéu como cabresto já estava presente. E o vermelho vem como uma cor para que elas sejam facilmente identificadas e vigiadas”, diz Ana Rusche.
A série, que teve seu sucesso impulsionado por manifestações contra Donald Trump, viu o feminismo incorporar essa fantasia, o que, na avaliação da socióloga Angela Alonso, tem pontos negativos e positivos.
“Quando você pega uma simbologia muito particular, provavelmente uma parte das mulheres que apoiaria a causa não a reconhece. É um símbolo que dificulta a expansão”, ela diz. Por outro lado, a dimensão teatral e cínica de se fantasiar como uma aia pode “gerar uma adesão mais emocional”, ela acrescenta.
A socióloga afirma que essa tática é adotada desde o movimento abolicionista, que fazia concertos e encenações em que libertavam um escravo em cima de um palco.
A ideia das aias vingou no mundo todo. Começaram a pipocar manifestantes vestidas assim em diversos países e contextos. Foi o caso das argentinas que assistiam à votação em Buenos Aires a respeito da descriminalização do aborto no país, em 2018, e quatro anos depois voltou até para as americanas, que brigavam pela garantia da Roe versus Wade, como ficou conhecida a decisão judicial de 1973 que protegia o direito ao aborto.
Foi no contexto da anulação da Roe versus Wade que o ilustrador Cristiano Siqueira usou pela primeira vez a referência de “O Conto da Aia”, em uma ilustração que vestia a estátua da Liberdade de vermelho e branco. Outros desenhos com a inspiração da história de Margaret Atwood também fizeram sucesso nessa última investida antiaborto.
Fernando Motta, dono do perfil @DesenhosDoNando, no Instagram, fez uma série de quatro charges sobre a urgência do projeto. A primeira delas mostra uma pequena aia, de lado, com uma barriga de grávida, segurando um balão.
Motta diz que a arte sinaliza não um possível futuro, mas um presente distópico. “A ideia é tocar nesse lugar do absurdo dessa obra, que não é tão ficcional quanto parece. Tem gente que realmente quer isso aí. Essas pessoas estão no Congresso”, ele afirma. “Estão querendo criminalizar crianças estupradas, comparar todas elas com homicidas. Aí transformei a aia numa criança grávida, com um balãozinho rosa.”
No Brasil, a simbologia de Atwood já tinha aparecido antes dos chargistas, pelas mãos das feministas que usaram as fantasias de aia em protestos. A vereadora Silvia Ferraro, do PSOL de São Paulo, lembra que, em 2021, manifestantes usaram roupas de aia para protestar contra o projeto Escolhi Esperar, que previa o ensino da abstinência sexual nas escolas paulistas.
Antes, em 2018, houve uma movimentação que usou a mesma tática em Brasília durante uma audiência pública sobre o aborto. Várias mulheres vestidas de aias ficaram em frente ao Supremo Tribunal Federal com cartazes com dizeres como “gravidez forçada é tortura”. “Apesar de não ser uma coisa tão popular no Brasil, existe uma similaridade entre os nossos retrocessos e ‘O Conto de Aia'”, diz Ferraro.
Segundo Rusche, a pesquisadora, as distopias como a de Atwood têm o papel de ser uma “pedagogia da catástrofe”. “Você mostra o que pode acontecer de forma tão terrível que a pessoa entende facilmente”, diz. “Mas isso não apresenta saídas. ‘O Conto da Aia’ tem essa ideia claustrofóbica e, para sair de uma situação de opressão, é necessário construir caminhos de resistência. A distopia é sedutora porque não coloca um lugar de mudança.”