Estresse tóxico na primeira infância gera dificuldade de aprendizado e de socialização

RIBEIRÃO PRETO, SP (FOLHAPRESS) – Episódios negativos frequentes e contínuos nos primeiros três anos de vida, chamados de “estresse tóxico”, podem gerar dificuldades de aprendizado e de relacionamento, além de danos à saúde física e mental.

Um desafio que Patrícia Rodrigues Miziara Papa, 54, pró-reitora de ensino e inovação, viveu de perto quando adotou a filha, então com 1 ano e 1 mês.

A menina, hoje com 9 anos e muito bem integrada à família, havia passado seis meses no abrigo antes de ganhar um lar definitivo e enfrentou atrasos motores. “Provavelmente, teve choros no berço negligenciados, não foi estimulada, não foi pega no colo”, diz Patrícia.

“Com um ano, ela ainda não sentava sozinha. Demos continuidade à fisioterapia, ela foi se recuperando, mas ainda tinha algumas atitudes mais agressivas, mordia com vontade, arranhava”, relata a mãe.

A família buscou suporte de uma psicóloga e de uma psicopedagoga para lidar com a situação. “O mais difícil é lidar com agressividade, a gente não espera e sempre se magoa quando está se empenhado em fazer o melhor. O mais dolorido, porém, era saber que tudo poderia ter sido evitado se o processo da adoção, o caminho jurídico, não fosse tão lento”, afirma.

A professora Nara Andrade, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisadora associada à Harvard University e à Rede Nacional de Ciência para a Educação, explica que “níveis elevados de adversidade podem ter influências poderosas e duradouras sobre o neurodesenvolvimento de crianças e adolescentes”.

Andrade reforça que o estresse tóxico corresponde a respostas prolongadas de ativação do sistema de estresse frente a situações como violação de direitos, maus-tratos, pobreza, racismo, entre outras situações violentas.

Segundo Andrade, as crianças afetadas têm duas vezes mais chances de desenvolver um transtorno mental e até risco de chegar a uma psicopatologia. Além disso, a docente ressalta que cerca de dois terços dos transtornos mentais em todo o mundo são atribuíveis à exposição negativa extrema, como ameaça ou privações.

Ana Paula Matias, oficial de projetos da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) no Brasil, diz que os prejuízos provocados pelo estresse tóxico são comprovados por evidências científicas.

“Especialmente no caso da primeira infância, essa toxicidade pode gerar comprometimentos da arquitetura cerebral, a exemplo da capacidade de o cérebro se organizar e fazer novas conexões, e na interação da criança com as pessoas e o ambiente em que vive, gerando, entre outras consequências negativas, dificuldade de socialização e de comunicação”, diz afirma.

Outra situação que desencadeia o problema são eventos trágicos, como o das enchentes no Rio Grande do Sul. “Crianças têm passado por situações adversas graves, como a perda dos pais, familiares, muitas ficaram sem acesso a escolas e serviços de saúde. Preservar a criança desse tipo de situações é vital”, observa a oficial.

COMO SURGE O ESTRESSE TÓXICO

O Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), comitê internacional que inclui a USP (Universidade de São Paulo), aponta que as principais formas de maus-tratos causadoras do estresse tóxico são a negligência física, emocional e educacional e as violências sexual, física e psicológica.

O estresse tóxico desencadeia doenças crônicas e mudanças de comportamento, incluindo agressividade, problemas de atenção, hipervigilância, ansiedade, depressão e dificuldade de adaptação escolar.

Em documento publicado em 2023, em parceria com outras entidades, o NCPI apontou que 26% dos casos de maus-tratos infantis no Brasil acontecem com quem tem de 0 a 4 anos de idade. Além disso, das crianças que sofreram morte violenta intencional no país, 58,9% eram do gênero masculino e 66,3%, negros.

“Segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), mais de 60% da população brasileira de até 17 anos vive em situação de pobreza. A privação de acesso à estimulação cognitiva e a serviços de educação de qualidade tem impactos importantes. A exclusão inclui dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas que se materializam em trajetórias, em sofrimento”, avalia Andrade.

A terapeuta e assistente social Mariana Argentato Abbari tem duas filhas. Uma das meninas, que hoje tem 1 ano e 5 meses, foi adotada quando tinha 30 dias de vida. Mesmo tão novinha, passou por situações de estresse enquanto ficou no hospital e no abrigo.

Abbari, que é pesquisadora da ciência do início da vida, afirma que a falta de atenção que a filha sofreu logo nos primeiros dias era perceptível no comportamento e na saúde da recém-nascida.

“Quando a equipe técnica nos chamou, ela já estava com uma bronquiolite. A violência e a negligência são muito determinantes do estresse para criança. Ela sentiu todas as sensações de abandono, desde a barriga. Foi uma bebê que chegou chorando muito, desde o primeiro momento”, lembra Abbari. Com muita paciência e amor, a família conseguiu superar a fase difícil.

Telma Abrahão, biomédica especialista em neurociência e desenvolvimento infantil, diz que o cérebro nesta fase tem uma atividade muito acelerada e que por essa razão o estresse tóxico causa tanto prejuízo.

“É quando ocorrem as bases fundamentais das funções executivas futuras, como controle de impulso, autorregulação emocional e socialização”, diz Abrahão.

Quem passa pelo problema cresce sem orientação de como lidar com emoções ou erros e pode tornar-se violento na fase adulta. “Quando os pais, figuras de cuidado, em vez de trazerem segurança, trazem medo, a criança se torna vulnerável, seu sistema nervoso fica em estado de alerta, luta e fuga constantemente, aumentando os hormônios do estresse”, pontua.

PROXIMIDADE DA VIOLÊNCIA

O efeito da exposição à violência na primeira infância também foi demonstrado em um artigo publicado neste ano no Journal of Child Psychology and Psychiatry por pesquisadores da USP, da University of Basel (Suíça) e de Harvard (EUA). Foram analisando 3.241 nascidos no Brasil, entre 2012 e 2014, de três anos de idade e de baixa que tiveram algum tipo de contato com homicídios ocorridos perto de suas casas.

Os dados foram cruzados com relatórios da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo para identificar quais crianças tinham presenciado homicídios (a 600 m, 700 m, 800 m, 900 m e 1 km de distância), bem como um grupo comparativo que não havia vivido a situação.

Todas aquelas expostas à violência tiveram prejuízo de competências de autorregulação, comportamento e habilidades cognitivas, de linguagem e motoras, com efeitos mais fortes em quem estava mais perto do crime. Os danos observados equivalem “a aproximadamente sete meses de perdas de aprendizagem”.