Moradores de São Sebastião do Caí perdem tudo com 3 cheias recorde em 6 meses

PAULA SOPRANA E BRUNO SANTOS
SÃO SEBASTIÃO DO CAÍ, RS (FOLHAPRESS) – A família de Carla dos Santos, 46, ficou sem móveis, roupas e eletrodomésticos com a cheia de São Sebastião do Caí (RS) em novembro do ano passado. “Perdemos tudo, tudo, tudo. Consegui me reerguer, e agora veio essa de novo”, conta a funcionária de supermercado, que mora com o marido e o neto.

Nesta última tragédia que assolou o Rio Grande do Sul, quando a água do rio já batia na cintura, eles retiraram o que foi possível da habitação. Salvaram geladeira, fogão, mesa e roupas de cama. “Já não tínhamos muita coisa dentro de casa, né?”.

Só que dessa vez, a casa não resistiu, e o que sobra dela são escombros e lama. Carla está em um abrigo e ainda não sabe como reconstruirá a vida pela segunda vez. A única certeza é que não pretende deixar o lugar onde cresceu. “Minha vida toda é aqui, eu me criei aqui, eu quero ver se construo minha casinha aqui de novo. Não adianta, é meu chão.”

Em seis meses, o município de São Sebastião do Caí, a 60 km de Porto Alegre, presenciou as três maiores cheias de sua história, duas delas em maio deste ano. Os habitantes das margens do rio Caí, que contorna a cidade, vivem um ciclo de perda e reconstrução que parece não terminar. O retorno da chuva forte ainda região adiciona um novo temor.

A cota de inundação do Caí é de 10,5 metros. Em 2 de maio, o rio marcou 17,6 m, de acordo com monitoramento do Serviço Geológico do Brasil. Em novembro do ano passado, registrou 16,08 m. O terceiro recorde ocorreu em 13 de maio deste ano, com 15,8 m.

O rio tem origem em São Francisco de Paula, na Serra Gaúcha. Com uma extensão de 285 km, cruza 41 municípios, costeando cidades arrasadas pela tragédia deste mês, como São Sebastião do Caí e Montenegro.
No município, a água não afetou apenas as áreas ribeirinhas, mas bairros nunca antes inundados, tirando cerca de 300 pessoas de casa. Segundo a prefeitura, foram impactadas todas as farmácias, os principais mercados, escolas, biblioteca pública e grande parte do comércio. Nas áreas mais coladas ao rio, poucas construções se mantiveram em pé.

Três semanas depois, o cenário é de guerra, com muitas casas no chão. A limpeza ainda levará meses e dependerá da trégua na chuva, que voltou a atingir o estado na quinta-feira (24).

Antônio da Rocha, 52, soube por parentes que sua residência havia sido levada pela água. Estava em viagem na Argentina e não conseguiu retornar. Só lhe restou a mala.

“A gente que tem um poder aquisitivo um pouquinho melhor ainda tem para onde ir”, diz o empresário, que está na casa de um sobrinho. “Mas a tristeza é que muita gente aqui não tinha quase nada, tinha só a casinha deles, né? Muita gente está em abrigo, o pessoal da minha infância É complicado”, acrescenta.

A família de Eferson Luis, 43, não perdeu a residência, comprada há apenas seis meses, mas ainda não sabe se será possível permanecer nela, diante do estado precário e da insegurança de uma nova cheia. Todo o interior está coberto de barro e não há mobília a recuperar nem no alto do segundo andar.
“Era uma segunda-feira e passou o carro anunciando que não era para o pessoal se apavorar. A gente achou que não ia dar uma cheia grande e que pela manhã iriam tirar o pessoal [das casas]. Mas fui checar o rio às 3 da manhã e a água estava passando o portão, que tem 1,70 m de altura”, lembra. Ele reuniu sua família e saiu pelos fundos da casa na mesma hora, deixando o resto para trás.

Eferson reclama da falta de informações oficiais e afirma que ainda não sabe como fazer para acessar os programas de moradia que devem ser disponibilizados pelos governos municipal e estadual.

A prefeitura local distribui alimentos, roupas e kits de higiene a partir de diversas doações. Famílias também têm acolhido os mais necessitados, e voluntários passam diariamente nas residências para distribuir marmitas. Procurada sobre um plano efetivo de moradia, a gestão municipal não respondeu até a publicação desse texto.

Por ora, cada membro da família de Luis está na casa de algum parente. “A gente está tentando arrumar um lugar para alugar, mas não arruma. Logo logo vai começar o colégio das crianças…”

Ele também tinha alguns cavalos, mas a maioria não sobreviveu. Dois, no entanto, permanecem ao lado da casa com uma charrete, que armazena documentos, doações e remédios que a família recebeu. Os animais são o meio de transporte para deixar os filhos na escola.

O vizinho deles Francisco Antônio Specht, 67, morador do Caí desde 1971 e da mesma casa há 24 anos, pretende morar no mesmo local. Sua casa de madeira permanece de pé, mas inundada até o teto pela água. Tudo que ele tem agora lhe foi doado. “A outra enchente já tinha sido ruim para a gente, mas essa de agora tirou tudo mesmo.”

As ruas onde habitam os ribeirinhos são contornadas pelo rio dos dois lados, o que explica parte da violência que derrubou tantas casas na cidade. Segundo relatos, o encontro das águas gerava grandes ondas, sendo muito difícil conseguir se movimentar, mesmo com água ainda na altura das pernas. Apesar disso, São Sebastião do Caí não registrou óbitos.

Quando o tempo está seco, as famílias retiram entulhos das residências e as limpam com a ajuda da comunidade. A região mais próxima ao rio está coberta de lixo contaminado no chão e com o barulho de retroescavadeiras que derrubam as últimas paredes.

No dia da visita da reportagem, Antônio da Rocha, o morador que perdeu a casa enquanto viajava para a Argentina, assava um churrasco em um dos bairros mais destruídos, com a ajuda de voluntários vindos de Caxias do Sul.
Os moradores se reuniram em volta do assado, conversavam e tomavam chimarrão, dando uma pausa na exaustiva faxina da cidade.

“O pessoal está ajudando muito com marmita, com lanches, com sanduíches, né? E a gente agradece de coração. Mas tivemos a ideia de assar um salsichãozinho, um galetinho com pão aí, uma comida diferenciada para dar um ânimo aqui para o pessoal.”