(FOLHAPRESS0 – Vera Holtz e Guilherme Leme viajavam juntos pela Europa em dezembro de 2008 quando decidiram passar o Natal na Dinamarca -“quase perto do Papai Noel”, brinca o artista-, na casa de Morten Kirkskov. O ator europeu se encontrava com o brasileiro em algumas passagens pelo Brasil.
Numa parede do apartamento do dinamarquês, um pôster chamou a atenção de Leme, que não podia ler o que estava escrito nele. Kirkskov contou ao colega que era o cartaz de sua encenação de “O Estrangeiro”, livro escrito por Albert Camus em 1942, que ele havia adaptado e levado aos palcos de seu país.
Depois da ceia, o brasileiro recebeu de Kirkskov, como presente natalino, o texto adaptado e a permissão de traduzir a obra para as audiências brasileiras. A montagem foi bem recebida, tanto pelo público quanto por grande parte dos críticos, quando foi apresentada pela primeira vez, de 2009 a 2012, no Brasil.
Mais de dez anos depois, a peça volta aos palcos como “O Estrangeiro Reloaded”, mais uma vez sob a direção de Holtz, nesta quinta-feira.
Sozinho no palco, Leme vive Meursault, um homem que acaba de perder a sua mãe e, depois do velório, se envolve numa trama que culmina no assassinato, por suas mãos, de um homem. Acompanhamos, então, o seu julgamento.
O ator conta que chegou a ler o livro quando era adolescente e não se envolveu. Quando recebeu o texto da adaptação, decidiu reler. “E aí caiu a ficha total”, ele diz.
“Não tem como não ser tocado por essa história, por esse homem tão cru e aquém do jogo da vida. Por isso ele morre, ele não joga o jogo da vida.”
Num prefácio de uma edição americana, publicada em 1955, Camus sintetizou a obra em uma frase. “Em nossa sociedade, qualquer homem que não chore no funeral de sua mãe corre o risco de ser condenado à morte”, escreveu.
“A honra, a moral, a forma como a sociedade se estrutura são coisas que o homem inventou, e ele não faz parte disso”, acrescenta Leme. “Agora, quem de nós nunca se perguntou ‘o que estou fazendo na merda desse mundo?’.”
Se na primeira encenação a plateia acompanhava um Meursault que se arrumava para seus momentos finais, vestindo um terno, a nova versão o lança num limbo. Num palco escurecido, o ator contracena só com um banco preto. Seu figurino, assinado pelo estilista João Pimenta, é uma regata e um macacão também pretos. Essa sobriedade dá espaço para a palavra e quem a declama.
“Eu não tenho tesão de subir no palco e fazer a mesma coisa, ia parecer prato requentado”, diz Leme, e Holtz concorda. “Decidimos colocar essa personagem num lugar onde essas outras coisas passam a existir e estão em looping, contando e recontando a história”, ela afirma.
Se antes o desejo da diretora Vera Holtz era que o ator Guilherme Leme quase sumisse de cena para dar todo o espaço ao personagem, Mersault, agora a abordagem é outra.
Agora a abordagem é outra. “Na primeira montagem, eu afastei bastante o Mersault do Guilherme, mas nessa não. Eu falei ‘traz você, com sua idade, sua experiência'”, diz a diretora. “A provocação era trazer o Guilherme, o Mersault e o Camus”, acrescenta o ator.
Da mesma forma que na primeira versão, a atriz e diretora teve de se desdobrar em muitas para participar do projeto e contar com a autonomia do colega de profissão. Quinze anos atrás, a rotina de gravação das novelas tomava quase todo o seu tempo.
De 2008 a 2012, a atriz apareceu em três folhetins da Globo, “Três Irmãs”, “Passione” e “Avenida Brasil”. Nesta última, viveu Mãe Lucinda, personagem que se tornou um sucesso. No ano seguinte, estrelaria o remake de “Saramandaia”.
“Estava sempre trabalhando muito. Quando o Guilherme me chamou, ele falou ‘não tem jeito, Vera, nós estávamos juntos naquele Natal’. Eu fiquei brigando.” Ela diz que brincava com a palavra “gift”, que se traduz do inglês como presente, mas do alemão como veneno. No fim, aceitou.
Holtz estreia “O Estrangeiro Reloaded” depois de retornar de uma turnê na Europa com “Ficções”, peça que protagoniza e que agora leva ao teatro Faap para uma nova temporada em São Paulo.
No teatro, as coisas muitas vezes acontecem de um dia para o outro. Leme e Holtz, por exemplo, só receberam a confirmação da estreia da peça cerca de um mês antes da data prevista. A atriz só conseguiu pousar em São Paulo dias depois de receber a notícia.
Tal como na primeira montagem, coube a Leme começar a desenhar o espetáculo enquanto a amiga não chegava para dirigir. Segundo Holtz, no entanto, isso não é um problema. Os dois se consideram diretores associados e estão sempre colaborando nos projetos um do outro. Além disso, a diretora acha bom dar a Leme o seu merecido espaço.
“A direção tem que deixar o ator um pouco livre, porque cada dia ele vai chegar num estado para fazer a peça. Ele tem que estar firme, saber o que que tem que fazer, mas, se ele vai fazer mais lento, mais rápido, vai se emocionar, isso é a escolha dele. É o espaço dos atores criadores.”
A primeira versão de “O Estrangeiro” marcou a estreia da atriz na direção, mas de novata no ofício ela não tinha nada. Holtz foi formada como uma multiartista. Em Tatuí, no interior paulista, onde nasceu e de onde ainda carrega o sotaque, frequentou o conservatório da cidade, onde aprendeu música clássica. Aos seis anos, ela já se arriscava ao piano.
Ela ainda chegou a cursar artes plásticas, mas, quando assistiu à peça “Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come”, com a atriz Myriam Muniz, ela descobriu o que queria fazer dali em diante. “Foi a primeira vez que eu vi uma peça de teatro, e eu tive uma epifania, decidi que queria fazer aquilo para a vida”, ela afirma.
E, se é pelo o cinema e pela televisão que ela é reconhecida -daqui ao metrô de Moscou, onde já foi abordada por uma fã–, a atriz segue maravilhada com o poder do teatro, que, de acordo com o que ela conta, vive agora um momento muito potente. “O espetáculo é um para um, é para quem está ali, não se repete”, diz. “A vibração de um espetáculo é cada dia de um jeito.”
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