SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Testes de diagnóstico com baixa sensibilidade, falta de biomarcadores que identifiquem os pacientes com mais chances de complicação e ausência de medicamentos específicos para tratar as formas graves da dengue são fatores que sobrecarregam os sistemas de saúde e podem contribuir para piores desfechos.
Uma recente revisão de estudos publicada na revista Plos Global Public Health chama a atenção para esses fatores no momento em que o Brasil vive uma escalada de casos de dengue e aumento no número de internações.
Nas seis primeiras semanas do ano, o número de registros da doença quadruplicou no país. São meio milhão de casos, 75 mortes e outras 350 estão sob investigação, segundo dados do Ministério da Saúde. Hospitais privados de São Paulo tiveram alta de 80% das hospitalizações por dengue.
A Rede D’Or, maior grupo de hospitais privados do país, por exemplo, registrou na primeira semana deste mês um aumento de 1.577% nos atendimentos de casos suspeitos de dengue na comparação com o mesmo período de 2023.
De acordo com o estudo, nos últimos anos houve inovações no controle do vetor, o Aedes aegypti, como repelentes espaciais e a liberação de mosquitos infectados com wolbachia, uma bactéria que infecta o mosquito e impede que os vírus da dengue, zika, chikungunya e febre amarela urbana se desenvolvam dentro dele.
Também mostra avanços no campo das vacinas. O imunizante QDenga está disponível no SUS (no momento, para crianças de 10 a 14 anos de municípios específicos). Outra opção em clínicas particulares é a vacina Dengvaxia, indicada apenas para quem já teve ao menos uma infecção pela doença.
Por outro, ainda existem lacunas importantes de diagnóstico e terapias. Diagnosticar pacientes com dengue aguda é um desafio devido à semelhança dos sintomas clínicos durante o início da doença. O padrão ouro dos testes é a biologia molecular (RT-PCR), mas ela não está disponível amplamente.
O teste rápido, baseado na detecção de uma proteína do vírus, é o mais utilizado, mas pode ter baixa sensibilidade, com muitos resultados falsos negativos, segundo a revisão de estudos.
“O profissional vê o teste negativo e descarta a dengue, o que é um risco. Os testes mais comuns são limitados em termos de performance e ainda há problemas de acesso aos testes melhores”, explica o infectologista André Siqueira, pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e um dos autores do estudo.
Em situações de grande circulação do vírus, é comum que o diagnóstico da dengue seja feito apenas com avaliação médica. Mas há sempre o risco de a doença ser confundida com uma outra de sintomas parecidos, retardando o tratamento adequado.
“Há muitas doenças com sinais parecidos aos da dengue, desde a gripe até a leptospirose. A leptospirose também pode alterar as funções dos rins e do fígado e provocar sangramento. Tem que fazer o diagnóstico diferencial, ter um sistema treinado e preparado”, diz o infectologista David Uip, atual diretor nacional de infectologia da Rede D’Or.
O estudo aponta que a inexistência de medicamentos para o estágio inicial da dengue, que pudessem prevenir a progressão para a forma grave da doença, é outro fator que dificulta a assistência e gera mais custo aos sistemas de saúde.
Há estudos em andamento para identificar agentes antivirais de ação direta que reduzam ou inibam a replicação viral e medicamentos direcionados ao hospedeiro, além do uso de anticorpos monoclonais, mas ainda estão em fases iniciais da pesquisa clínica.
“Não há nada na mão. Hoje você sustenta a vida. O indivíduo com dengue grave que chega com insuficiência respiratória, você coloca no respirador, por exemplo. Não temos recursos específicos, é uma encrenca. A Covid você consegue tratar com antivirais antes de complicar, a dengue não. Você interna, faz o tem que fazer, pode dar certo ou errado”, diz Uip.
O infectologista reforça que a maioria dos pacientes está sendo tratada ambulatorialmente, com hidratação, mas tem aumentado os casos daqueles que precisam ser internados em razão da febre hemorrágica e outras complicações, como miocardite e problemas neurológicos.
Os pacientes mais vulneráveis à forma grave, segundo ele, são os mais velhos e os com comorbidades. “Mas acabei de dar alta para um menino de nove anos que não tem nenhuma doença associada e teve uma dengue com alteração de frequência cardíaca”, diz o médico.
A revisão de estudos também mostra uma mudança etária da doença. Até a década de 1990, a dengue era predominantemente uma infecção infantil, com poucos adultos desenvolvendo a febre hemorrágica e outras complicações.
No entanto, a idade média das infecções tem aumentado em muitos países. Na Tailândia, passou de 8,1 anos em 1981 para 24,3 anos em 2017. No Sri Lanka, entre 2000 e 2018, a proporção de casos em crianças caiu de 59,9% para 35,7%.
Segundo André Siqueira, da Fiocruz, essa mudança também tem impacto na assistência. Adultos infectados com fatores de risco como diabetes, hipertensão, doença renal e doença cardiovascular têm mais chance de desenvolverem a forma grave da doença e precisar hospitalização.
Mas é necessário cuidado também em situações menos graves que envolvam essa população. “A hidratação excessiva em um idoso pode criar outros problemas, edema no pulmão, por exemplo.”
Para Uip, serviços públicos e privados de saúde precisam se preparar não só com o treinamento das equipes para o manejo adequado do paciente, como também ter uma resposta rápida para a compra de insumos adicionais e a abertura de leitos.
“Tem que prever que vai internar mais, vai precisar de mais soro, mais diagnóstico, mais leitos de internação e de UTI [Unidade de Terapia Intensiva].”
Outro ponto importante, segundo ele, é o acompanhamento do paciente após o primeiro atendimento. “A dengue tem uma convalescência sintomática longa, não dá para atender essa pessoa e mandar ela retornar ao mesmo pronto-socorro, que estará lotado de novos casos.”
Na sua opinião, o atendimento de retorno deve acontecer em um ambulatório ou mesmo por meio de teleconsulta. “O que não pode acontecer é dar alta sem volta. Às vezes, você tem complicação da dengue no décimo dia [após o início dos sintomas]. Esse paciente tem que ser acompanhado. A responsabilidade do hospital ou da unidade de saúde não termina no primeiro atendimento.”