SÃO PAULO, SP- Um grupo de cidadãos turcos que se opõe ao presidente Recep Tayyip Erdogan entrou com um mandado de segurança na Justiça brasileira para pedir que o seu pedido de refúgio no país seja julgado rapidamente.
Cerca de cem pessoas ligadas ao Hizmet, movimento liderado pelo clérigo Fethullah Gülen e que foi banido pelo governo Erdogan, esperam por decisão em seus pedidos de refúgio, muitos feitos há mais de três anos.
Assim, a ação pede que o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) –órgão ligado ao Ministério da Justiça do Brasil e responsável por acatar ou recusar as solicitações de refúgio– acelere seus trâmites para julgar logo os requerimentos.
Em 2019, o governo da Turquia pediu a extradição do turco naturalizado brasileiro Ali Sipahi por sua ligação com o Hizmet.
Sipahi chegou a ser preso preventivamente no Brasil, mas o STF acabou negando o pedido de extradição, afirmando que, na Turquia, não haveria garantia de devido processo legal e apontando que o governo Erdogan vem sendo questionado por “atitudes de menoscabo à democracia”.
Relatório da Comissão Europeia (o braço Executivo da União Europeia) de outubro de 2020 afirma que, na Turquia, “há um sério retrocesso no respeito às normas democráticas, ao Estado de Direito e às liberdades fundamentais”. Também o Departamento de Estado americano aponta, em relatório de 2019, que uma lei antiterrorismo na Turquia “restringiu liberdades fundamentais e comprometeu o Estado de Direito”.
Apesar disso, integrantes do Conare foram informados de que o órgão ainda aguarda a conclusão de levantamento sobre a situação na Turquia para determinar se há, realmente, perseguição política no país.
Segundo dados do próprio conselho e do Ministério da Justiça, há 234 pedidos de refúgio de turcos aguardando uma decisão –nos últimos três anos, só um solicitante turco conseguiu refúgio no Brasil, segundo a plataforma.
Em 2020, houve três pedidos de refúgio de turcos indeferidos pelo Conare; em 2019, sete casos foram extintos ou arquivados, e, em 2018, apenas um caso foi reconhecido, e 18 foram arquivados ou extintos.
Como comparação, nos Estados Unidos, foi concedido refúgio político a 1.799 turcos em 2019, a maioria integrantes do Hizmet. Em 2018, foram 501, e em 2017, 28.
“O mundo inteiro reconhece que há essa perseguição, mas o governo brasileiro diz que precisa esperar mais informações sobre o caso”, diz Adriano Pistorelo, advogado do Centro de Atendimento ao Migrante (CAM). “A demora vulnerabiliza muito a comunidade turca, que teme a extradição, mesmo depois que o STF reconheceu que há perseguição política à comunidade por parte do Estado turco.”
Em resposta ao mandado de segurança de uma das famílias, a juíza federal Iolete de Oliveira determinou, em 25 de janeiro, que o Conare conclua em até 180 dias o processo sobre a solicitação de refúgio.
O caso está pronto para ser votado desde maio de 2020, mas ainda não entrou na pauta das reuniões do órgão. Também há um parecer do Ministério Público Federal, de 8 de fevereiro, defendendo a conclusão do julgamento em até 90 dias.
O Conare pediu indeferimento da liminar, dizendo que precisa fazer “atualização das informações do país de origem” para verificar se o relato dos solicitantes de refúgio condiz com a situação atual na Turquia.
O órgão disse também, em ofício, que “o estudo sobre o país de origem em relação à Turquia ainda está sendo atualizado, e muitas informações ainda estão sendo coletadas”.
O Conare afirmou que segue estritamente a ordem cronológica dos pedidos, do mais antigo para o mais novo, mas que há exceções, por exemplo, quando há risco de medida de retirada compulsória.
Procurado pelo jornal Folha de S.Paulo, o Ministério da Justiça disse que a lei estabelece sigilo para os pedidos de refúgio e que, por isso, a pasta não poderia dar mais informações sobre o andamento do caso.
O presidente Erdogan e o clérigo Gülen eram aliados até 2013, quando o líder turco se voltou contra o Hizmet após uma série de investigações de corrupção atingir aliados do governo e até familiares do político.
Com isso, Erdogan passou a acusar Gülen de manter infiltrados no Judiciário e na polícia, para tentar derrubá-lo.
A partir daí, o governo turco passou a perseguir os integrantes do Hizmet, que tinha milhares de escolas e cursinhos pré-vestibular na Turquia e ao redor do mundo, além de milhões de integrantes na polícia, academia, mídia e judiciário turcos.
Erdogan passou a considerar o Hizmet uma organização terrorista. Fechou escolas e interveio nos veículos de mídia ligados ao grupo. Em 15 de julho de 2016, houve uma tentativa de golpe de Estado contra Erdogan, comandada por militares. Os confrontos deixaram mais de 250 mortos e 2.000 feridos.
Para juristas, não há critérios objetivos para determinar se uma organização é terrorista. No caso de sanções, o Brasil segue as listas do Conselho de Segurança da ONU –e o Hizmet não consta nelas.
Segundo o governo turco, a tentativa de golpe foi orquestrada por seguidores do Gülen, que vive exilado nos EUA. O clérigo nega ter envolvimento com a ação.
Relatório de direitos humanos do Departamento de Estado afirma que, desde a tentativa de golpe em 2016, “autoridades demitiram ou suspenderam mais de 45 mil policiais e militares e 130 mil funcionários públicos, afastaram um terço do Judiciário, detiveram ou prenderam mais de 80 mil cidadãos, e fecharam mais de 1500 ONGs alegando atividades terroristas, primariamente por supostas ligações com o movimento do clérigo Fethullah Gülen, a quem o governo acusa de ter sido o arquiteto da tentativa de golpe, e foi designado pelo governo turco “Organização terrorista Fethullah (Feto)”.
Em resposta por email enviada à reportagem, o embaixador da Turquia no Brasil, Murat Yavuz Ates, afirmou que, “infelizmente, os membros da Feto estão tentando se infiltrar no Brasil usando como método pedidos de refúgio”.
“Esses elementos terroristas não devem receber refúgio de jeito nenhum. Não se pode esquecer que a Feto também representa uma ameaça aos países onde estão ativos”, diz o embaixador. A Turquia está recorrendo da decisão do STF de negar a extradição de Sipahi.
Segundo o embaixador, o Hizmet, usando escolas e cursinhos, fez uma “lavagem cerebral em mentes jovens”, disfarçada de atividades de treinamento, “doutrinando um grupo grande de seguidores radicais”.
Segundo ele, esses membros seguem as ordens de Gülen, “não têm normas legais ou morais” e o movimento foi responsável pela tentativa de golpe na Turquia. “Nos últimos quatro anos, a luta contra a Feto dentro e fora da Turquia tem sido uma das principais prioridades da Turquia.”
O padre Marcelo Marostica, diretor da Caritas Arquidiocesana e membro suplente do Conare, relata que a sociedade civil já mandou uma carta sobre a situação dos turcos e a Defensoria Pública da União também fez um parecer pedindo prioridade –em vão.
“Eles dizem que não se pode furar a fila, que estão esperando pesquisas, e ficam todos de mãos atadas”, diz Marostica.
Um dos solicitantes de refúgio, que entrou com mandado de segurança, teme ser preso por causa de um pedido de extradição do governo Erdogan, como aconteceu com Sipahi em 2019. Ele não quer se identificar por medo de represálias a familiares que ainda vivem na Turquia.
Depois da tentativa de golpe de Estado em 2016 contra Erdogan, a empresa do solicitante na Turquia foi confiscada e a mulher dele, que era professora em uma escola, foi demitida e teve o diploma cassado. Já o solicitante estava nos EUA e não voltou para a Turquia, por medo de ser preso.
A esposa teve que ir ilegalmente para a Grécia com os dois filhos, um de sete anos e outro de dois meses.
O casal ficou dois anos separado até conseguir se reencontrar em agosto de 2018 no Brasil, onde nasceu seu terceiro filho. “Tenho uma empresa, gero empregos e contribuo no Brasil, mas podemos ser extraditados a qualquer momento, tenho muito medo disso.”
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