BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – A revelação que o Ministério da Saúde argentino mantinha uma espécie de centro de imunização VIP – no qual políticos, seus familiares e outras pessoas próximas ao poder conseguiam furar a fila para receber a a vacina contra a Covid-19 – causou uma nova crise no governo do presidente Alberto Fernández.
O escândalo, que ganhou o apelido de “Vacina Gate”, já derrubou um ministro, ameaça outros nomes da cúpula do governo e causou uma indignação na sociedade argentina.
Isso porque a facilidade com que essas personalidade tiveram acesso às doses contrasta com o ritmo lento da campanha de vacinação para a população em geral.
Até esta segunda (22), 722.234 tinham recebido ao menos uma dose de imunização no país, segundo dados do site Our World in Data. Isso significa que a cada 100 argentinos, apenas 1,6 recebeu a vacina até o momento. Para comparação, no Brasil a proporção é de 3,3 para cada 100 habitantes.
A estimativa atual é que o Ministério da Saúde tenha reservado para seu próprio uso e para vacinar pessoas próximas – incluindo políticos e familiares- cerca de 3.000 doses.
Na segunda, após a divulgação do caso, o governo admitiu que permitiu que pessoas que não estavam nos grupos prioritários furassem a fila da vacinação, mas revelou apenas 70 nomes que teriam se beneficiado do esquema.
O caso já está na Justiça. Na manhã desta terça-feira (23), o hospital Posadas (um dos principais do país) e a sede do Ministério da Saúde foram alvos de uma operação de busca e apreensão. Além disso, o ex-titular da pasta, Ginés González García – que renunciou por causa do escândalo – está sendo processado.
Quem revelou a história foi o jornalista Horacio Verbitsky, 79, um apoiador de longa data do peronismo (principal movimento político argentino, do qual faz parte Fernández) e que já foi assessor da ex-presidente e atual vice Cristina Kirchner.
Na semana passada, Verbitsky reconheceu publicamente que furou a fila para receber a vacina. Ele fez o anúncio porque o jornal Clarín, o principal do país, iria publicar no domingo (21) uma reportagem revelando o caso.
Em sua declaração, o jornalista, incriminou abertamente García, que já vinha desgastado dentro do governo. Verbitsky disse que tinha decidido se vacinar, e então telefonou “para o velho amigo Ginés”. O então ministro pediu que ele fosse até a sede do próprio Ministério da Saúde para receber a dose.
Além furar a fila, o veterano jornalista também não precisou fazer um cadastro para conseguir um horário para receber sua dose. Os argentinos têm reclamado muito desse processo e relatam que tanto a inscrição pela internet quanto pelo telefone apresentam problemas e demoram horas para serem concluídas.
Logo depois da primeira divulgação, mais casos começaram a ser revelados. Além do centro de vacinação no ministério, havia equipes dedicadas a distribuir vacinas em casa para os pacientes VIP.
Quando o caso veio à tona, apenas um pouco mais de um terço do 1,8 milhão de doses da vacina Sputink V que a Argentina recebeu da Rússia já tinha sido utilizado.
Naquele momento, a imunização estava restrita apenas para os profissionais de saúde na maior parte do país. A exceção era a Província de Buenos Aires (que não inclui a capital), onde pessoas com mais de 70 anos já tinham começado a receber a dose. Na cidade de Buenos Aires, a vacinação de idosos com mais de 80 começou apenas nesta segunda.
A Argentina contratou 5 milhões de doses da Sputnik V para serem entregues em fevereiro, mas a produção atrasou, e novas levas programadas para março e abril também devem sofrer o mesmo problema. Nesta semana deve ter início ainda a vacinação com a Oxford/AstraZeneca, a partir de um convênio com o México.
A demora para dar celeridade à vacinação já vinha irritando os argentinos e a revelação de vários personagens ligados ao poder vacinados com antecedência só aumentou a revolta.
Entre os 70 beneficiados divulgados pelo governo estão o ex-presidente Eduardo Duhalde, 79, sua mulher, sua filha e seu secretário particular; o principal sindicalista do país, Hugo Moyano, 77, sua mulher e seu filho mais novo; o líder da Câmara, o deputado peronista Sergio Massa, 48, e toda sua família; o procurador do Tesouro e ex-assessor de Cristina, Carlos Zannini, 66; o ministro da Economia, Martín Guzmán, 38; o assessor de imprensa de Fernández, Juan Pablo Biondi, 48; o chefe de gabinete do presidente, Santiago Cafiero, 41; e o embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli, 64.
Tanto Fernández quanto Cristina também já receberam a imunização, mas o caso deles é diferente. Ambos foram vacinados publicamente, em uma tentativa de aumentar o apoio da população à campanha.
Assim que o caso foi revelado, o presidente pediu a renúncia de Ginés González García e o substituiu pela então número dois da pasta, Carla Vizzoti.
Assim que assumiu, a nova ministra disse que as vacinações ilegais eram apenas “casos pontuais” e que, por ordem do presidente, iria aumentar a fiscalização sobre o calendário de vacinação. Ela se comprometeu, ainda, a divulgar o nome dos beneficiados caso o episódio se repetisse.
Do outro lado, a oposição aproveitou o episódio para criticar o governo. Por meio de suas redes sociais, o ex-presidente Mauricio Macri, 62, disse que condenava a existência do centro de vacinação VIP e que só irá se vacinar quando chegasse a sua vez. “Não passarei na frente de nenhum argentino que seja idoso ou da população de risco.”
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